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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Ode à velha Camela

Roberto de Queiroz

Velha Camela, poluída “não és”, super-habitada “não és”, sem recursos “não és”, suja “não és”. Desumana, “sim”. Mas és minha e eu não te troco por outra. Aqui nasceram meus sonhos, meus anseios, a vontade de vencer obstáculos, a febre de trabalho e a criatividade.

Velha Camela, minha deusa, minha namorada. “Nasceste ontem, renasces hoje.” Vejo-te viva, vejo-te imortal. Vejo-te descobrindo o espírito de nosso tempo, “em que ricos e poderosos são fraternos, apenas, embriagados”. Por outro lado, vejo-te adormecida. Vejo tuas ruas tristes, teus mocambos empoeirados, olvidados lá nos morros, conduzidos pela mão madrasta do abandono.

Os que vêm de fora não te conhecem, velha Camela. Não sabem disso. Não conhecem esse mistério.

Acredito, velha Camela, que um dia há de chover uma chuva bem forte e, a conta dessa chuva, haverá água suficiente para lavar tua face, para lavar a sombrosidade de teu povo, pois teu povo está cada vez mais sombrio, mais soturno, mais exasperado. O suor de seu rosto, os ganhos de seu trabalho são malbaratados pela agudez das garras dos oportunistas.

Que tu acordes, velha Camela, sob a mística equidade dessa chuva, tão equitativamente envolvente que trará em seus pingos grossos e duradouros recordações do passado e repostas ao presente. Talvez ela não traga todas as recordações nem todas as respostas, mas será com certeza o reflexo vultoso da autenticidade que verei transparecendo na brumosidade da água.

P. S.: Camela é distrito de Ipojuca (cidade localizada na área metropolitana de Recife/PE).

(Crônica publicada na Folha de Pernambuco, 28/07/2014, Opinião, p.10)

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