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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Memórias da minha iniciação à leitura

Carminha Bandeira*
Introdução
Mais do que um relato autobiográfico, o meu objetivo ao escrever essas memórias procura responder a um antigo desafio lançado pela professora Magda Soares às professoras (es) e pedagogas (os), de fazerem esse exercício de reconstituição dos seus próprios processos de aprendizado da leitura, procurando reorientar suas metodologias, a partir da reflexão sobre a própria experiência de aprender a ler.  Buscando, inclusive, redimensionar o papel das antigas alfabetizadoras e alfabetizadores, que ensinavam a ler, nas cidades pequenas e nas áreas rurais, quando muitas vezes, não haviam cursado além da quarta série primária.
Com isso, quem sabe poderíamos começar a escrever, a muitas mãos, uma Pedagogia da aprendizagem da leitura com a cara da diversidade desses Brasis, montando o nosso quebra-cabeça a partir de como se ensina a ler e escrever nos grotões, nos sertões, nas periferias das grandes cidades. E quem sabe, (não custa sonhar...) começamos a resgatar coletivamente a história do ensino da leitura no Brasil?  E dessa forma, traremos novas luzes ao velho e acirrado debate dos acadêmicos, sobre o antagonismo estéril (pelo menos para mim) entre os métodos fônicos, analíticos, sintéticos, como se esse fosse o x da questão do analfabetismo e dos excluídos da sociedade letrada?
Ao começar a realizar o meu exercício - cuja primeira versão  compartilho aqui nesse espaço de poetas e leitores diversos -,  descubro o papel fundamental do meu pai nesse processo. Foi ele que me ensinou a ler, bem antes de ir para a escola, a partir de umas combinações felizes: a) sua profissão como radiotelegrafista, que propiciou a convivência na minha primeira infância com um ambiente naturalmente impregnado de impressos, códigos lingüísticos e das tecnologias da comunicação; b) a abertura, impregnada de afeto, para mediar o meu contato com esses equipamentos, inclusive a brincadeira com o teclado da máquina, transformado em minha primeira cartilha de ABC; c) o fato de ser um leitor natural, de jornais, revistas, livros de literatura; d) o gostar de contar histórias e ler sempre os clássicos da literatura infantil para mim; e) e finalmente, realizar a prática da leitura e da escrita de forma natural, incorporada à vida,  servindo de modelo de quem lia e escrevia por dever do ofício, porém,  com muito gosto e satisfação.
Um detalhe muito importante antes de concluir esta introdução: a formação escolar do meu pai não foi além da quarta série primária. Depois disso, ele fez mais dois anos de formação técnica em radio telegrafia. E com isso ele fez a minha iniciação à leitura, que se caracteriza, como vai se evidenciando, como uma relação marcadamente  edipiana.
O teclado e os jornais: duas lembranças bem marcantes
Uma das recordações mais remotas da minha iniciação à leitura refere-se à  imagem do meu pai , sentado diante da máquina de escrever, rodeado de aparelhos que emitiam luzes e ruídos, operando o pequeno telégrafo com que se comunicava com os aviões, recebendo informações dos vôos, através do código Morse.
O meu pai era radiotelegrafista e quando se casou em 1951, foi trabalhar numa estação do Campo de Aviação (era assim que se chamavam antigamente os aeroportos do interior) na cidade de Bom Jesus da Lapa, às margens do Rio São Francisco.
Ele era de Juazeiro e a minha mãe, de Santa Filomena, sertão de Pernambuco, de onde acabou migrando para Petrolina. Eu nasci em Petrolina, mas por ter vivido a minha primeira infância em Bom Jesus da Lapa – trafegando, sempre por via aérea, por sobre aquele trecho específico do rio, que liga Pernambuco à Bahia -, me sinto meio baiana, meio pernambucana, barranqueira ou, porque não dizer: sanfranciscana?
É este o contexto de onde parto para buscar os primeiros vestígios de lembranças do meu processo de iniciação à leitura, talvez por volta dos três anos de idade.  Vejo-me sentada no colo de pai, diante da máquina de escrever, operando o pequeno telégrafo, ao mesmo tempo receptando e emitindo as mensagens em código Morse.
Nos intervalos, meu pai me deixava brincar com o teclado, que foi, na verdade, a minha primeira carta do ABC. Ali aprendi a reconhecer as letras: as vogais, as consoantes, o C: primeira letra do meu nome e dos demais irmãos e irmãs, em homenagem à minha mãe Corina.
Além da máquina de escrever, o telégrafo, o telefone antigo e outras geringonças próprias do sistema de comunicação radiotelegráfica (que equipavam a estação onde o meu pai trabalhava) por ali também circulavam diariamente alguns jornais distribuídos nos aviões: -  Diário de Minas, Diário de Pernambuco, Jornal do Brasil – cujos títulos aprendi rapidamente a distinguir. Posso arriscar, então, que, de forma brincante, pouco consciente e absolutamente natural, fui  descobrindo e processando o funcionamento do sistema alfabético.  Construindo o meu próprio percurso de aprendizado da leitura, me espelhando na figura do meu pai.
 Foram muitas as ocasiões em que almoçávamos, eu e meus irmãos, na estação de rádio, pois dia sim, dia não, meu pai dava plantão à hora do almoço, quando os aviões costumavam chegar, no intervalo das 12 às 15 horas. O almoço ia de casa, na marmita, levada por Manuelão, pessoa muito querida, auxiliar de serviços gerias dos aeroviários. Minha mãe reforçava a quantidade quando a gente resolvia também comer por lá. Meu pai espalhava os jornais num canto da sala, como se fossem esteiras e a gente se sentava sobre as notícias, enquanto ele ia servindo os nossos pratos.
Um belo dia, eu devia ter aproximadamente cinco anos, cheguei perto de Zezinho Emerenciano, um grande amigo da família que estava em nossa casa lendo o jornal e li com convicção: DIARIO DE MINAS.
Zezinho, surpreendido, me olhou e perguntou:
- E Carminha já sabe ler?
Ele duvidou quando eu falei que sim, achou que eu havia memorizado o título e começou a apontar palavras aleatórias pedindo para que eu lesse. Eu lia todas, sem dificuldade, até que ele pediu que, em vez de palavras soltas, eu lesse um parágrafo. E eu fui lendo, em andamento mais lento, avançando, porém, aos poucos, enquanto adquiria maior segurança. Zezinho acompanhava e sorria, com a maior perplexidade.
As histórias e a literatura infantil
Tanto o meu pai, como a minha mãe, costumavam contar histórias para mim: João e Maria, Cinderela, Branca de Neve e os Sete Anões, Pinochio, As viagens de Gulliver...
Eu adorava, mas percebo hoje uma distinção entre a intenção do contar para os dois: o meu pai tinha consciência que estava me ensinando a ler e tinha clareza absoluta do papel da literatura nesse processo. Ele ia além do contar por contar e começou a comprar e ler os livros das mesmas histórias para mim e meus irmãos. Lendo nos livros as mesmas histórias que eu já conhecia de ouvir contar, ele fazia com que eu naturalmente fosse percebendo a diferença entre as narrativas oral e escrita. E sempre pedia que eu recontasse, me ajudando a compreender e a relatar a história.
 Também extraia as palavras chaves para eu memorizar. Lembro-me perfeitamente dele fazendo isso com os nomes dos sete anões. Escrevia os nomes em fichas - MESTRE, ATCHIM, DENGOSO, ZANGADO, DUNGA, SONECA, FELIZ - e ia me mostrando, me ajudando a reconhecer e distinguir cada um. Depois pedia que eu identificasse os nomes nas páginas do livro.
A caligrafia e a caneta-tinteiro
O nome José Bandeira inscrito na tampa de ouro da caneta-tinteiro de marca Compactor estava, logicamente, entre as primeiras palavras que eu aprendi a memorizar. Essa caneta ele ganhou de presente do avô e a tampa tinha duas marcas de uma mordida que dei, por volta dos dois anos de idade.
Lembro-me que com a mesma concentração e naturalidade com que pai operava o telégrafo e a máquina de escrever, manejava com destreza a caneta-tinteiro, seja para escrever cartas, exercitar sem compromisso a arte de versejar, assinar os nossos boletins escolares, preencher talões de cheques, deixando no papel as marcas de uma caligrafia impecável.
 Ao que me parece, a caligrafia era ensinada como disciplina pelos antigos alfabetizadores – ter um traço de letra firme e legível era um objetivo importante do ensino da leitura-escrita. Será que isso ainda é válido para hoje? As teclas devem abolir o exercício da escrita caligráfica?
Uma capa de chuva inusitada
Através da memória da minha mãe posso imageticamente representar um episódio acontecido quando eu ainda era um bebê que  ilustra esse universo natural de comunicação e leitura,  que constituiu o meu habitat natural na infância e ajudou a me construir como leitora.
 Ela conta que foi ao encontro do meu pai me carregando no colo, num determinado dia em que o  avião atrasou e ele precisou ficar até o final da tarde no campo. Quando pai finalmente se liberou dos afazeres, começou a cair uma garoa e os dois estavam sem sombrinha ou guarda-chuva.  Para me proteger, eles simplesmente, me envolveram na capa da máquina de escrever e assim, caminhamos de volta para casa. É claro que não me recordo disso, mas posso imaginar e visualizar as imagens desse episódio relatado pela minha mãe, como cenas cinematográficas, incorporando-se (e ampliando) às minhas próprias memórias.
Imagino ainda que todos os elementos que podem orientar as considerações finais estão apontados na introdução, prefiro deixar as conclusões por conta dos leitores.
Recife, 07 de julho de 2011.

sábado, 3 de setembro de 2011

A atualidade de Castro Alves

Arnaldo Niskier*

Se a arte literária é sempre um desafio público, ser poeta é desafiar a opinião e a razão muitas vezes do próprio poeta. Em Castro Alves, os poemas mais fortes, muitas vezes herméticos, transmitem beleza e mistério, deixam no espírito do leitor estudioso a dúvida em relação a sua profundidade, a sua causa primeira e a sua amplitude.
 
O que, realmente, tocava a alma do poeta, por exemplo neste trecho de uma de suas poesias mais inspiradas, intitulada No meeting du comité du pain?
 
''Não deixemos, Hebreus, que a destra dos tiranos/ Manche a arca ideal de nossas ilusões./ A herança do suor, vertido há dois mil anos,/ Há de chegar intacta às novas gerações,/ Nós que somos a raça eleita do futuro,/ O filho que Deus amou, qual Benjamin...''
 
Em cada um desses versos, à exceção do quarto, Castro Alves relembra a história judaica. Em Os escravos, o poema Século compara a mocidade a ''Moisés no Sinai''.
 
O que reivindicava Castro Alves em seus poemas? Terá sido, ele também, um assumido cristão novo? Que interpretação final devemos dar, nos dias de hoje, a Vozes d'África? Logo na primeira estrofe, o poeta diz:
 
''Há dois mil anos te mandei meu grito.''

Que grito terá sido? Na geografia abstrata do lirismo, por onde terão voado as asas do Condor?
 
Resposta precisa não existe. Ditá-la, seria transformar a arte do verso numa ciência exata, com o que definitivamente não concordamos. Antônio Frederico de Castro Alves nasceu na fazenda das Cabaceiras, no interior da Bahia, no dia 14 de março de 1847, e ali viveu até os 7 anos. Junto aos pais e a sua ama-de-leite, Leopoldina, dela ouviu as primeiras histórias sobre os horrores da escravidão. Segundo um de seus biógrafos, Waldemar Matos, este lugar deixou sulcos inapagáveis na alma do poeta, que viria a ser o cantor dos escravos.

Em 1854 mudou-se para a cidade de São Félix, às margens do Rio Paraguaçu. Em Cachoeira, cidade vizinha, Castro Alves frequentou sua primeira escola. Pouco tempo depois, a família transferiu-se para Salvador. Quando o menino completou 9 anos, a família já numerosa (com os meninos Antônio, José Antônio e Guilherme e as irmãs Elisa e Adelaide) mudou-se para uma casa maior. Castro Alves foi matriculado no Colégio Sebrão, no alto das ladeiras da Montanha e da Conceição, onde atualmente fica a Praça Castro Alves. Após o nascimento de Amélia, a última filha do casal, a família transferiu-se para o Solar da Boa Vista, em Brotas. A casa da Boa Vista, mais do que qualquer outra, ficou ligada ao poeta, transparecendo em grande parte da sua obra.
 
Com a morte de D. Célia, mãe de Castro Alves, em 1859, a família passou a morar no centro da cidade, no Largo do Pelourinho. Em 1862, Dr. Antônio casou-se pela segunda vez com a viúva Maria Ramos Guimarães, mudando-se para o Solar do Sodré, onde hoje é o Colégio Ipiranga. Em 1861, ainda no ginásio, o poeta declamou sua primeira poesia, na festa de comemoração da liberdade da terra baiana, graças aos heróis de Pirajá:

''Se o índio, o negro, o africano,/ E mesmo o perito hispano/ tem sofrido servidão;/ Ah! Não pode ser escravo/ Quem nasceu no solo bravo/ Da brasileira região!''

Castro Alves e o irmão José Antônio seguiram para Recife, em 1862, onde fizeram os estudos preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito. O poeta foi reprovado na primeira tentativa, mas teve a alegria de ver publicados alguns de seus poemas no Jornal do Recife.
 
Fez carreira poética até chegar à glória máxima de ser exaltado nos braços do povo, quando sua poesia social tinha a finalidade ostensiva de propaganda política e mesmo revolucionária. Por isso mesmo, o bardo era conhecido como ''a tuba sonora''.
 
Dois fatos importantes marcaram o nome de Castro Alves na campanha abolicionista no Brasil: de um lado, a Lei Euzébio de Queirós, de 1850, reprimindo o tráfico africano e, do outro, a Lei do Ventre Livre, sancionada em 28 de setembro de 1871, dois meses depois da morte do poeta, o que ocorreu a 6 de julho daquele ano.

Que mistério faz perdurar a genialidade do poeta dos escravos, decorridos 132 anos da sua morte? Seus poemas continuam a ser admirados, pela força da sua essência.

*Arnaldo Niskier é secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras.

(Artigo publicado no Jornal do Brasil, 19/05/2004, p. B2)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Tempo de definir


Nelson Hoffmann*

Em minhas leituras bíblicas, sempre tive especial predileção pelo Eclesiastes, do Antigo Testamento. Gosto daquela denúncia da total vaidade de tudo, do alerta para a precariedade do presente e da conclusão para a plena entrega em Deus. Vivemos em ilusão, pura ilusão! Tudo é ilusão. O tempo é transitório, precário, há um tempo para tudo, e somos fracos, quebradiços, nada controlamos, pois que há um tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de

Morrer é definir-se para sempre.
        
Atrai-me a condução para a total entrega. A capitulação contradiz-se em libertação. Testemunhei a rendição em mim quando sofri o infarto. Não quis aceitar, teimei, reagi. Encurralado, fui colocado diante dos fatos: ou ou. Em ambos, o fim ou quase. A chance mínima, em mãos de outros. Entreguei-me: fizessem de mim o que quisessem.

E fui feliz.

Assim mesmo descaio sempre. Gasto-me em lutas, lanço-me em empreitadas mil. Esfalfo-me por riqueza, glória, poder. Caço vantagem, lucro, bem-estar. Tenho no dinheiro, na vaidade, no prazer o meu norte. Quero abarcar o mundo com meus feitos. E esqueço que tudo tem seu tempo, há um momento oportuno para cada empreendimento debaixo do céu.

Por vezes acordo. Acordo e conheço que me embaralho, perco, que desando. Que passo, passei.

A vida?!

Como nos versos de Mário de Sá-Carneiro:

Passei pela minha vida

Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida

Disperso-me. Embrulho-me em sonhos, agito-me e não saio do lugar. Quando paro pra pensar, sinto que recuo. Quando recuo, encontro o vácuo. O que fiz do que fui?
        
Eu sou o que fui.
        
E o que serei? O que farei do que ainda não sou? Serei o quê?

Serei?!

Um dia saí de casa, ao trabalho, e meia hora depois morria.

Ainda tenho meia hora?

Serei o que sou. Elaboro-me. A cada minuto, a cada segundo, a cada fração de. Posso não chegar à próxima fração. A vida é frágil, eu sou débil e, além disso, o homem desconhece a sua hora.
        
Entrego-me. Não posso mais adiar, o tempo foge-me. Preciso recolher-me, concentrar. É Natal, é luz do caminho, é estrela da chegada. Contabilizo seis décadas e meia de vagueação e troco a folhinha de mais um Novo Ano. O presente já é passado e o futuro é quase presente. Tudo caminha para o fecho. A história conclui-se, é tempo de definir.

A definição final está próxima.


*Nelson Hoffmann é escritor e crítico literário gaúcho.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sensibilidade

Nelson Hoffmann*

Eu tenho um amigo [...] com quem troco correspondência há tempos. Seu nome é Roberto de Queiroz, tem livro publicado [...], participa de várias antologias, exerce o magistério e mora em Camela, município de Ipojuca, Pernambuco. Angustiado, sofre com as limitações do mundo e realiza-se na arte.

[Quando] [...] publiquei o texto Pai e Filhos, em minha coluna do Jornal Igaçaba [...], mal se fizera a distribuição do jornal e já me chegava carta do Roberto de Queiroz, comentando o texto. Entre coisas mais, abordava a “sensibilidade” por mim mencionada. Sobre isso, trechos da carta:

… algo no texto Pai e Filhos me chamou a atenção. É essa tal sensibilidade, essa tal espiritualidade, esse tal gosto pela vida interior.

… o Amigo diz que sua filha Inês é sensível, inteligente e tem gosto pela vida interior [...]. Daí, há uma indagação: em um mundo materialista, as pessoas que primam pela vida interior não se tornam (de certo modo) um tanto frágeis?

Leo Buscaglia, em seu livro AMOR, diz que as pessoas sensíveis, caso deixem que os outros percebam isso, se tornam vulneráveis, de modo que as outras pessoas podem tirar proveito disso.

Eu, sensível que sou, já melindrei certas vezes, e não aprendi com os “erros”. Hoje, apesar de um pouco arisco, continuo a primar pela vida interior. Isso está no DNA ou será que é fruto da própria gênese?...

Fiquei com a carta na mão, a pensar. E agora?

Por essa eu não esperava. Dizer que alguém é sensível, inteligente e tem gosto pela vida interior é uma coisa, é a constatação de uma realidade. Mas saber se isso está no DNA, ou é da gênese, exigia um conhecimento que eu não alcançava.
    
Saí-me pela tangente, procurei a Inês**. Ela me ganha no assunto, brincando. Exibi a carta, pedi que lesse e respondesse. [...]
        
Deixei [a carta na sala, em cima da mesa]. Dias depois, a Inês mostrou-me a resposta. Foi esta:

... Pessoas sensíveis sofrem, e muito, nesse mundo movido pelo material. Por ser muito sensível e as pessoas não me compreenderem, por um período de minha vida criei em mim uma barreira, em forma de ironia, para me defender das coisas que me machucavam. Consegui aguentar por alguns anos, mas cheguei a um colapso nervoso.

Hoje [...] vejo o quanto é bom ter essa sensibilidade, apesar de sofrer, mas aprendi a ter meu coração aberto para entender as pessoas e meus atos, lembrar dos erros que cometi e não me arrepender de tê-los feito, saber que ninguém pode corresponder totalmente ao que esperamos e que eu posso, com a minha sensibilidade, ajudar as pessoas a encontrar uma resposta.

Por incrível coincidência, o livro que estou lendo é Perdas e Ganhos, de Lya Luft, e eu gostaria de escrever aqui um pequeno trecho [...]: “Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psíquico. Nascemos do jeito que somos: algo em nós é imutável, nossa essência são paredes difíceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalha será a de toda a nossa existência. […] Algumas pessoas nascem mais frágeis que outras… Não é uma sentença, mas um aviso da madrasta Natureza.”

 (HOFFMANN, Nelson. In: A arte de nascer das palavras, Santo Ângelo, EDIURI/Florianópolis, LEDIX, 2009, p. 55-61)

*Nelson Hoffmann é escritor e crítico literário gaúcho.

**Inês(=Inês Hoffmann): escritora e crítica literária gaúcha.

sábado, 4 de junho de 2011

Interpoética e a política de formação de leitores

Carminha Bandeira*

A vivência acumulada há mais de cinco anos, resultante da paixão pela poesia e levada a cabo por estes três mosqueteiros – Cida Pedrosa, Raimundo de Moraes e Sennor Ramos – já conferiu ao site Interpoética.com o status de primeiro Ponto de Cultura Virtual, além do pleno reconhecimento, por parte dos poetas, de sua condição de maior site de poesia de Pernambuco. (Abençoada seja a nossa megalomania!)

No entanto, cabe ainda destacar um valor agregado, que merece ser compartilhado pelos seguidores e indicado como reflexão aos que definem e executam as políticas públicas de leitura: - trata-se do potencial de sites como este, que é ao mesmo tempo ambiente de acesso à informação e ferramenta para o exercício da leitura e da escrita, colocado à disposição para formação de leitores.

Entre os anos de 2005 - 2009, enquanto coordenei o Programa Manuel Bandeira de Formação de Leitores (Secretaria de Educação do Recife), tive a oportunidade de constatar, por dentro, a importância desse acervo de A a Z, dedicado à poesia pernambucana. Seja pela qualidade, seja pela magnitude, o site é um exemplo vivo de organização de acervo, permanentemente atualizado e disponível para ser acessado livremente pelo público interessado.

A relevância dessa iniciativa tornou-se mais evidente, especialmente no ano de 2008 – quando os poetas pernambucanos foram escolhidos como homenageados do ano letivo -, o que implicou no desafio de colocarmos à disposição de mais de 100 mil estudantes, com idade entre 02 e mais de 60 anos, matriculados em mais de 200 escolas (é claro que nem todas as escolas estavam conectadas na internet) obras poéticas e referências biográficas do maior número possível de poetas.

Infelizmente, as bibliotecas escolares (nem as públicas) não estavam suficientemente abastecidas para atender àquela demanda. Naquele momento, através do Programa Manuel Bandeira de Formação de Leitores, havíamos instalado um processo de reestruturação e dinamização das bibliotecas escolares, mas por maior que fosse o nosso esforço e a nossa boa vontade, o que conseguimos levantar de acervo de poesia para tantos estudantes foi absolutamente irrisório.

Assim, uma das alternativas encontradas pela Secretaria de Educação foi editar um caderno, com seleção de doze poetas, incluindo uma pequena amostra de seus principais poemas e um texto com dados biográficos básicos, para distribuir aos estudantes e professores.

A outra saída veio com a descoberta do site Interpoética, que ampliou consideravelmente as possibilidades da pesquisa. Passamos a orientar os professores e mediadores de leitura a acessarem o site, que passou a ser a principal fonte de informação sobre o tema.

Podemos afirmar, sem exagero, que nunca se leu tanta poesia nas escolas municipais como naquele ano, e para nossa surpresa, nunca ficou tão claro o quanto a poesia é apreciada tanto pelas professoras e professores, como pelos estudantes, de todas as idades.

Desde as crianças de 02 a 06 anos, da Educação Infantil, aos adolescentes do Ensino Fundamental, estendendo-se aos adultos da EJA (60 anos ou mais), todos expressaram vivo interesse em ouvir, ler, dizer e participar dos saraus poéticos. Foi impressionante inclusive a adesão ao exercício da criação poética. Tantos poetas se revelaram inclusive os que não sabiam ainda escrever.

Naquele contexto, nasceu uma parceria formidável entre as equipes do Programa Manuel Bandeira e o Interpoética, que culminou na realização de dois projetos bem sucedidos: O Poeta de cara com a escola e A escola linkada na poesia.

 No primeiro, alguns poetas foram convidados para irem às bibliotecas escolares, dizer poesia, fazer saraus, interagir com os professores e estudantes no exercício da criação poética. No segundo, a experiência foi documentada processualmente, com a participação dos estudantes e disponibilizada no site. Numa outra etapa, as imagens editadas foram apresentadas para o grupo. Isso resultou na criação dos dois hotsites, com os nomes dos projetos, onde estão disponibilizadas as imagens, as criações, as aprendizagens desse processo, que podem ser acessados pelos leitores interessados.

Fazendo hoje uma retrospectiva dessa experiência, identifico importantes lições que podem ajudar a dimensionar ações e estratégias de políticas públicas de leitura:

A primeira se refere à importância do ambiente, para acondicionar adequadamente e disponibilizar os acervos e as informações para o público leitor. É claro que uma política de formação de leitores não se faz sem acervo, mas a experiência demonstra que ela não pode se restringir a distribuição de acervos e antes de começar a distribuir grandes quantidades de livro para as escolas é necessário preparar o ambiente para receber os livros e preparar pessoal para organizar e disponibilizar para empréstimo. A chegada dos livros às escolas sem a preparação prévia desse ambiente tem gerado muito transtorno à vida das escolas, gerando perdas consideráveis de livros, além de fazer com que sejam guardados da forma mais estapafúrdia, desde ficar trancados a sete chaves nos armários das diretorias, até irem parar nos almoxarifados e até em banheiros.

O ambiente pode ser virtual e temático, - como é o caso do Interpoética -, mas também pode ser físico e diversificado, como o que apontam as bibliotecas públicas, comunitárias e escolares. Esses ambientes devem ser amplos, acolhedores, adequadamente concebidos para acondicionar os livros, receber o público leitor (no caso das bibliotecas escolares, o grande número de estudantes) e propiciar situações interativas entre estudantes, professores, poetas, escritores, contadores de histórias, a começar pela comunidade e a cidade.

A segunda lição se refere à necessidade de articular esses dois ambientes: a biblioteca física e a biblioteca virtual. Essa articulação modifica radicalmente o conceito de biblioteca e rebate diretamente na identidade de um novo profissional, que mistura características de professor, bibliotecário, contadores de histórias, profissionais da comunicação e informação.

A concepção desse novo ambiente implica na ampliação do debate com diferentes setores e instituições da sociedade (universidades, profissionais de biblioteca e documentação, pessoal das tecnologias da informação e comunicação, pedagogos, poetas, escritores, leitores em geral) para refletirem sobre esse perfil e definirem programas de formação para mediadores de leitura.

A terceira lição se refere à relevância da Poesia enquanto gênero privilegiado na condução do processo de iniciação à leitura, seja pelas diferentes possibilidades que ela apresenta em lidar com a plasticidade da palavra, incluindo o ritmo, a sonoridade, a dimensão estética; além de desafiar a imaginação para a síntese e a formulação de conceitos e propiciar o exercício autoral.

Outro aspecto relevante da Poesia para a iniciação à formação do leitor / escritor, se refere ao fato de que a criação poética é um processo mental, que para se expressar de imediato, necessita da palavra, de forma que o poeta nasce antes de dominar a escrita.

Assim, a medida que o estudante ou leitor em formação se descobre poeta, inserido num processo compartilhado de produção de linguagem, se supõe que ele vá se sentir muito mais motivado a enfrentar o desafio de dominar a escrita, que passa a ter um sentido muito claro para ele. E isso é substantivamente diferente do que erradicar o analfabetismo, mas valorizar e incorporar a herança da tradição oral, que permanece tão viva em nosso meio, no processo compartilhado e ininterrupto de formação de leitores.

As pessoas, compartilhando processos de desenvolvimento e criação de linguagem, e gerando seus próprios acervos, devem ser a principal razão das políticas de leitura. E para que isso aconteça, é necessário investir no ambientes adequados, enquanto meios de produção de linguagens e construção de sujeitos.


*Carminha Bandeira é escritora e educadora - CEEL/UFPE.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A poesia de Roberto de Queiroz

Flávio Chaves* 

A poesia de Roberto de Queiroz é de “características fortes e de um valor cotidiano incomum. Traz em seu bojo a espontaneidade que deve seguir sempre unida ao bom poema [...]. Com versos curtos [...] consegue descrever o necessário sem as extravagâncias e as perdições que o prolongamento de um verso pode trazer”.


Carta, Recife, PE, 29 de novembro de 2001.

*Flávio Chaves é escritor, crítico literário e ex-presidente da UBE/PE.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Um jovem poeta que nos vem de Pernambuco


Nelson Hoffmann*

Roberto de Queiroz é um jovem poeta que nos vem de Pernambuco e que já conhecemos há bom tempo. Tem poucos livros publicados, mas o que produz é sempre de primeira qualidade. Graduado e especializado em Letras, já foi laureado em certames literários realizados em Pernambuco, Goiás, Rio Grande do Sul e São Paulo. É integrante de várias antologias. Cá entre nós, que já saboreamos muito a poesia de Roberto de Queiroz, uma sugestão: não deixem de ler o recém-lançado A nudez de escrever. É poesia pura.

Pedidos pelo e-mail robertodequeiroz@yahoo.com.br



Jornal O Nheçuano, Roque Gonzales, RS, abril/maio 2011, Autores & Livros, p.10.

*Nelson Hoffmann é escritor e crítico literário gaúcho.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Uma cassação inaceitável

Roberto de Queiroz

Li, com riso e espanto, o artigo “Uma cassação inaceitável”, nesse jornal, de Nelly Carvalho. Artigo esse que aborda uma portaria do governador de Brasília, José Roberto Arruda, proibindo o uso de gerúndio na linguagem burocrática. Algo que, segundo ela, muitos professores de português já fizeram. Ora, no caso dos professores de português, em vez de proibirem o uso de gerúndio, eles deveriam fazer referência à forma das orações adjetivas: desenvolvidas (iniciadas por pronome relativo e com verbo flexionado) e reduzidas (sem pronome relativo inicial e com verbo no infinitivo, gerúndio ou particípio). Quanto ao governador de Brasília, creio que está metendo o nariz onde não deve. Mas o que tal atitude pode trazer à baila? Excesso de poder, abuso de autoridade ou...?

Jornal do Commercio, Recife, PE, 30/11/2007, Cartas.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Brasil pretende importar um programa de educação americano

Roberto de Queiroz

Puxa! O Brasil pretende importar um programa de educação americano? Importamos a música, a cultura, por que não a educação? Só nos resta saber se um programa americano atenderia às nossas necessidades educacionais. A realidade americana é outra. Ora, em vez de importar tal programa, o governo deveria se preocupar em reduzir o índice de salas superlotadas, a falta de professores e oferecer aos alunos e docentes condições mínimas para a realização de atividades de ensino/aprendizagem, como bibliotecas, cedetecas, devedetecas, laboratórios de ciências, de informática, de línguas, quadras poliesportivas e assim por diante. Além disso, discordo da expressão “a equipe escolar deve (...) passar por um programa de reciclagem” caso os alunos não apresentem bom desempenho, uma vez que se recicla lixo, não pessoas. Em se tratando de professores, estes devem ser capacitados e bem pagos.

Jornal do Commercio, Recife, PE, 23/09/2007, Cartas.