Roberto de Queiroz
De acordo com o poeta Manoel de Barros, é possível tirar poesia até do esgoto. Augusto dos Anjos, nesse contexto, palavreia de maneira similar. Segundo ele, o beijo é a véspera do escarro. “O que se depreende [...] [dessa expressão] não é o sentido frio do dicionário da palavra escarro, mas a grande verdade da vida e que existem pessoas que beijam outras com um beijo traiçoeiro, como Judas, que beijou Cristo para, em seguida, entregá-lo à prisão. [...] Para retratar essa realidade, o poeta diz que o beijo (a parte boa) antecede a parte má (o escarro). Ninguém perguntou, mas ele responde. É assim o mundo visto pela ótica pessimista de quem escreve, embora seja bem mais conhecido dizer que o poeta só fala de amor. O certo é que a tradição não liga muito a ideia de esgoto à poesia” (Admmauro Gommes, Intradução poética).
São lúcidos os comentários acima. São perfeitamente possíveis tanto
haver poesia no esgoto quanto a proximidade entre beijo e escarro. Não no
sentido literal (denotativo), mas no sentido literário (conotativo) da palavra.
O beijo de Judas ilustra muito bem a linha de raciocínio de Admmauro. Afinal,
“o que realmente caracteriza a poesia é o fingimento. Observemos, por exemplo,
a primeira estrofe do poema Autopsicografia,
de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega
a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.” Esses dois últimos versos revelam
claramente que o poeta não anula a existência de uma dor real, mas a dor
fingida, a dor que figura no poema, assume uma característica própria e atua
com mais intensidade que a dor real” (1).
De resto, vale salientar que certos autores definem a poesia como
ficção: “Poeta, escreveu Jonson, grande dramaturgo inglês, contemporâneo de
Shakespeare e um dos homens mais cultos do seu tempo, é, não aquele que escreve
com métrica, mas o que finge e forma uma fábula, pois fábula e ficção são, por
assim dizer, a forma e a alma de toda obra poética ou poema.” Mas, conforme
assegura Manuel Bandeira, “é evidente que a poesia pode nascer também em pleno
foco da consciência, e portanto atuar de maneira claramente apreensível. [...]
Afinal em poesia tudo é relativo: a poesia não existe em si: será uma relação
entre o mundo interior do poeta, com a sua sensibilidade, a sua cultura, as
suas vivências, e o mundo interior daquele que o lê” (2).
P. S. – Citações minhas: (1) em “O poeta e a poesia”; (2)
em “Meus versos livres e soltos”.
(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste, Mossoró/RN,
30/10/2014, Opinião, p. 2)