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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O olhar do poeta

Roberto de Queiroz


De acordo com o poeta Manoel de Barros, é possível tirar poesia até do esgoto. Augusto dos Anjos, nesse contexto, palavreia de maneira similar. Segundo ele, o beijo é a véspera do escarro. “O que se depreende [...] [dessa expressão] não é o sentido frio do dicionário da palavra escarro, mas a grande verdade da vida e que existem pessoas que beijam outras com um beijo traiçoeiro, como Judas, que beijou Cristo para, em seguida, entregá-lo à prisão. [...] Para retratar essa realidade, o poeta diz que o beijo (a parte boa) antecede a parte má (o escarro). Ninguém perguntou, mas ele responde. É assim o mundo visto pela ótica pessimista de quem escreve, embora seja bem mais conhecido dizer que o poeta só fala de amor. O certo é que a tradição não liga muito a ideia de esgoto à poesia” (Admmauro Gommes, Intradução poética).

São lúcidos os comentários acima. São perfeitamente possíveis tanto haver poesia no esgoto quanto a proximidade entre beijo e escarro. Não no sentido literal (denotativo), mas no sentido literário (conotativo) da palavra. O beijo de Judas ilustra muito bem a linha de raciocínio de Admmauro. Afinal, “o que realmente caracteriza a poesia é o fingimento. Observemos, por exemplo, a primeira estrofe do poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.” Esses dois últimos versos revelam claramente que o poeta não anula a existência de uma dor real, mas a dor fingida, a dor que figura no poema, assume uma característica própria e atua com mais intensidade que a dor real” (1).

De resto, vale salientar que certos autores definem a poesia como ficção: “Poeta, escreveu Jonson, grande dramaturgo inglês, contemporâneo de Shakespeare e um dos homens mais cultos do seu tempo, é, não aquele que escreve com métrica, mas o que finge e forma uma fábula, pois fábula e ficção são, por assim dizer, a forma e a alma de toda obra poética ou poema.” Mas, conforme assegura Manuel Bandeira, “é evidente que a poesia pode nascer também em pleno foco da consciência, e portanto atuar de maneira claramente apreensível. [...] Afinal em poesia tudo é relativo: a poesia não existe em si: será uma relação entre o mundo interior do poeta, com a sua sensibilidade, a sua cultura, as suas vivências, e o mundo interior daquele que o lê” (2).

P. S. – Citações minhas: (1) em “O poeta e a poesia”; (2) em “Meus versos livres e soltos”.

(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste, Mossoró/RN, 30/10/2014, Opinião, p. 2)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Ser professor

“A profissão de professor é a pedra basilar na construção das demais. Médicos, jornalistas, engenheiros ou atores dependeram da contribuição do professor ao longo do aprendizado. Ele é o facilitador na socialização do indivíduo como também na construção do aprendizado profissional. É, em geral, uma profissão pouco valorizada e desestimulada pelo Poder Público e pela sociedade, mas é a mais requisitada e necessária para o desenvolvimento pessoal e social. Seus serviços são usados pela sociedade com muito maior frequência do que os de qualquer outra profissão, porque são cotidianos e ininterruptos para a formação e informação das novas gerações.”

(CARVALHO, Nelly. Apresentação. In: QUEIROZ, Roberto de. Leitura e escritura na escola: ensino e aprendizagem. Livro Rápido, 2013, p. 13) 

A crise na política brasileira

“A crise na política brasileira não é problema de candidato A ou B, nem de partido A ou B, e sim dos eleitores brasileiros, cuja parcela significativa não sabe votar. Intelectual ou não, essa parcela vota na base do oportunismo, de modo que cada um puxa a brasa para sua sardinha e joga água na brasa da sardinha dos outros. Em geral, não importa se um candidato é desonesto, despreparado ou não, mas se atende a interesses particulares, é sempre o favorito.
(Roberto de Queiroz, Folha de Pernambuco, 14/10/2014, p. 7) 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

As autoridades da educação

Roberto de Queiroz

A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, além de muito elogiada pela imprensa por sua elegância e discrição, foi muito feliz em seu discurso de posse, em primeiro de janeiro de 2011. Alguns dos pontos mais altos de seu discurso se referem à liberdade religiosa, à liberdade de imprensa e à valorização do ensino infantil, do ensino fundamental e do ensino médio (se articula, inclusive, investir no ensino médio profissionalizante).

Mas o ponto que mais me chamou a atenção no discurso de Dilma está na cita: “Os professores e as professoras são as verdadeiras autoridades da educação.” Reconhecer esse fato publicamente é algo deveras positivo. Isso porque ultimamente não é dada ao professor a autoridade que lhe é de direito.

Ou seja, o professor dificilmente participa de decisões que envolvem suas atribuições profissionais. Essas decisões quase sempre são tomadas por pessoas que nunca ministraram uma única aula. Apenas fizeram a leitura de teórico A ou B, cujas obras não necessariamente refletem a realidade atual. E empurram tudo isso goela abaixo. São os que costumo chamar de “ratos de laboratório”.

Ora, alguém faria uma cirurgia com um autodidata em medicina (uma pessoa que nunca fez uma cirurgia, apenas leu teórico A ou B)? É lógico que não. Por que com a educação não pode ser diferente? Pode e deve.

Todavia, o professor nem sempre é consultado sobre as temáticas de capacitações pertinentes à sua área de atuação, sobre o sistema de avaliação implantado por estados e municípios, etc. Pelo contrário, o professor é um dos profissionais que mais tiveram aumento de tarefas nos últimos anos, sem ter o direito de aduzir sua opinião a esse respeito.

No discurso de Dilma, há uma promessa de mudança. A atual presidente promete dar ao professor e à professora o papel que lhes é de direito, isto é, o de verdadeiras autoridades da educação. Porém, pelo andar da carruagem, parece que se trata de apenas mais uma promessa de governo.

(Artigo publicado na Folha de Pernambuco, 13/10/2014, Opinião, p. 10)