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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Memórias da minha iniciação à leitura

Carminha Bandeira*
Introdução
Mais do que um relato autobiográfico, o meu objetivo ao escrever essas memórias procura responder a um antigo desafio lançado pela professora Magda Soares às professoras (es) e pedagogas (os), de fazerem esse exercício de reconstituição dos seus próprios processos de aprendizado da leitura, procurando reorientar suas metodologias, a partir da reflexão sobre a própria experiência de aprender a ler.  Buscando, inclusive, redimensionar o papel das antigas alfabetizadoras e alfabetizadores, que ensinavam a ler, nas cidades pequenas e nas áreas rurais, quando muitas vezes, não haviam cursado além da quarta série primária.
Com isso, quem sabe poderíamos começar a escrever, a muitas mãos, uma Pedagogia da aprendizagem da leitura com a cara da diversidade desses Brasis, montando o nosso quebra-cabeça a partir de como se ensina a ler e escrever nos grotões, nos sertões, nas periferias das grandes cidades. E quem sabe, (não custa sonhar...) começamos a resgatar coletivamente a história do ensino da leitura no Brasil?  E dessa forma, traremos novas luzes ao velho e acirrado debate dos acadêmicos, sobre o antagonismo estéril (pelo menos para mim) entre os métodos fônicos, analíticos, sintéticos, como se esse fosse o x da questão do analfabetismo e dos excluídos da sociedade letrada?
Ao começar a realizar o meu exercício - cuja primeira versão  compartilho aqui nesse espaço de poetas e leitores diversos -,  descubro o papel fundamental do meu pai nesse processo. Foi ele que me ensinou a ler, bem antes de ir para a escola, a partir de umas combinações felizes: a) sua profissão como radiotelegrafista, que propiciou a convivência na minha primeira infância com um ambiente naturalmente impregnado de impressos, códigos lingüísticos e das tecnologias da comunicação; b) a abertura, impregnada de afeto, para mediar o meu contato com esses equipamentos, inclusive a brincadeira com o teclado da máquina, transformado em minha primeira cartilha de ABC; c) o fato de ser um leitor natural, de jornais, revistas, livros de literatura; d) o gostar de contar histórias e ler sempre os clássicos da literatura infantil para mim; e) e finalmente, realizar a prática da leitura e da escrita de forma natural, incorporada à vida,  servindo de modelo de quem lia e escrevia por dever do ofício, porém,  com muito gosto e satisfação.
Um detalhe muito importante antes de concluir esta introdução: a formação escolar do meu pai não foi além da quarta série primária. Depois disso, ele fez mais dois anos de formação técnica em radio telegrafia. E com isso ele fez a minha iniciação à leitura, que se caracteriza, como vai se evidenciando, como uma relação marcadamente  edipiana.
O teclado e os jornais: duas lembranças bem marcantes
Uma das recordações mais remotas da minha iniciação à leitura refere-se à  imagem do meu pai , sentado diante da máquina de escrever, rodeado de aparelhos que emitiam luzes e ruídos, operando o pequeno telégrafo com que se comunicava com os aviões, recebendo informações dos vôos, através do código Morse.
O meu pai era radiotelegrafista e quando se casou em 1951, foi trabalhar numa estação do Campo de Aviação (era assim que se chamavam antigamente os aeroportos do interior) na cidade de Bom Jesus da Lapa, às margens do Rio São Francisco.
Ele era de Juazeiro e a minha mãe, de Santa Filomena, sertão de Pernambuco, de onde acabou migrando para Petrolina. Eu nasci em Petrolina, mas por ter vivido a minha primeira infância em Bom Jesus da Lapa – trafegando, sempre por via aérea, por sobre aquele trecho específico do rio, que liga Pernambuco à Bahia -, me sinto meio baiana, meio pernambucana, barranqueira ou, porque não dizer: sanfranciscana?
É este o contexto de onde parto para buscar os primeiros vestígios de lembranças do meu processo de iniciação à leitura, talvez por volta dos três anos de idade.  Vejo-me sentada no colo de pai, diante da máquina de escrever, operando o pequeno telégrafo, ao mesmo tempo receptando e emitindo as mensagens em código Morse.
Nos intervalos, meu pai me deixava brincar com o teclado, que foi, na verdade, a minha primeira carta do ABC. Ali aprendi a reconhecer as letras: as vogais, as consoantes, o C: primeira letra do meu nome e dos demais irmãos e irmãs, em homenagem à minha mãe Corina.
Além da máquina de escrever, o telégrafo, o telefone antigo e outras geringonças próprias do sistema de comunicação radiotelegráfica (que equipavam a estação onde o meu pai trabalhava) por ali também circulavam diariamente alguns jornais distribuídos nos aviões: -  Diário de Minas, Diário de Pernambuco, Jornal do Brasil – cujos títulos aprendi rapidamente a distinguir. Posso arriscar, então, que, de forma brincante, pouco consciente e absolutamente natural, fui  descobrindo e processando o funcionamento do sistema alfabético.  Construindo o meu próprio percurso de aprendizado da leitura, me espelhando na figura do meu pai.
 Foram muitas as ocasiões em que almoçávamos, eu e meus irmãos, na estação de rádio, pois dia sim, dia não, meu pai dava plantão à hora do almoço, quando os aviões costumavam chegar, no intervalo das 12 às 15 horas. O almoço ia de casa, na marmita, levada por Manuelão, pessoa muito querida, auxiliar de serviços gerias dos aeroviários. Minha mãe reforçava a quantidade quando a gente resolvia também comer por lá. Meu pai espalhava os jornais num canto da sala, como se fossem esteiras e a gente se sentava sobre as notícias, enquanto ele ia servindo os nossos pratos.
Um belo dia, eu devia ter aproximadamente cinco anos, cheguei perto de Zezinho Emerenciano, um grande amigo da família que estava em nossa casa lendo o jornal e li com convicção: DIARIO DE MINAS.
Zezinho, surpreendido, me olhou e perguntou:
- E Carminha já sabe ler?
Ele duvidou quando eu falei que sim, achou que eu havia memorizado o título e começou a apontar palavras aleatórias pedindo para que eu lesse. Eu lia todas, sem dificuldade, até que ele pediu que, em vez de palavras soltas, eu lesse um parágrafo. E eu fui lendo, em andamento mais lento, avançando, porém, aos poucos, enquanto adquiria maior segurança. Zezinho acompanhava e sorria, com a maior perplexidade.
As histórias e a literatura infantil
Tanto o meu pai, como a minha mãe, costumavam contar histórias para mim: João e Maria, Cinderela, Branca de Neve e os Sete Anões, Pinochio, As viagens de Gulliver...
Eu adorava, mas percebo hoje uma distinção entre a intenção do contar para os dois: o meu pai tinha consciência que estava me ensinando a ler e tinha clareza absoluta do papel da literatura nesse processo. Ele ia além do contar por contar e começou a comprar e ler os livros das mesmas histórias para mim e meus irmãos. Lendo nos livros as mesmas histórias que eu já conhecia de ouvir contar, ele fazia com que eu naturalmente fosse percebendo a diferença entre as narrativas oral e escrita. E sempre pedia que eu recontasse, me ajudando a compreender e a relatar a história.
 Também extraia as palavras chaves para eu memorizar. Lembro-me perfeitamente dele fazendo isso com os nomes dos sete anões. Escrevia os nomes em fichas - MESTRE, ATCHIM, DENGOSO, ZANGADO, DUNGA, SONECA, FELIZ - e ia me mostrando, me ajudando a reconhecer e distinguir cada um. Depois pedia que eu identificasse os nomes nas páginas do livro.
A caligrafia e a caneta-tinteiro
O nome José Bandeira inscrito na tampa de ouro da caneta-tinteiro de marca Compactor estava, logicamente, entre as primeiras palavras que eu aprendi a memorizar. Essa caneta ele ganhou de presente do avô e a tampa tinha duas marcas de uma mordida que dei, por volta dos dois anos de idade.
Lembro-me que com a mesma concentração e naturalidade com que pai operava o telégrafo e a máquina de escrever, manejava com destreza a caneta-tinteiro, seja para escrever cartas, exercitar sem compromisso a arte de versejar, assinar os nossos boletins escolares, preencher talões de cheques, deixando no papel as marcas de uma caligrafia impecável.
 Ao que me parece, a caligrafia era ensinada como disciplina pelos antigos alfabetizadores – ter um traço de letra firme e legível era um objetivo importante do ensino da leitura-escrita. Será que isso ainda é válido para hoje? As teclas devem abolir o exercício da escrita caligráfica?
Uma capa de chuva inusitada
Através da memória da minha mãe posso imageticamente representar um episódio acontecido quando eu ainda era um bebê que  ilustra esse universo natural de comunicação e leitura,  que constituiu o meu habitat natural na infância e ajudou a me construir como leitora.
 Ela conta que foi ao encontro do meu pai me carregando no colo, num determinado dia em que o  avião atrasou e ele precisou ficar até o final da tarde no campo. Quando pai finalmente se liberou dos afazeres, começou a cair uma garoa e os dois estavam sem sombrinha ou guarda-chuva.  Para me proteger, eles simplesmente, me envolveram na capa da máquina de escrever e assim, caminhamos de volta para casa. É claro que não me recordo disso, mas posso imaginar e visualizar as imagens desse episódio relatado pela minha mãe, como cenas cinematográficas, incorporando-se (e ampliando) às minhas próprias memórias.
Imagino ainda que todos os elementos que podem orientar as considerações finais estão apontados na introdução, prefiro deixar as conclusões por conta dos leitores.
Recife, 07 de julho de 2011.

sábado, 3 de setembro de 2011

A atualidade de Castro Alves

Arnaldo Niskier*

Se a arte literária é sempre um desafio público, ser poeta é desafiar a opinião e a razão muitas vezes do próprio poeta. Em Castro Alves, os poemas mais fortes, muitas vezes herméticos, transmitem beleza e mistério, deixam no espírito do leitor estudioso a dúvida em relação a sua profundidade, a sua causa primeira e a sua amplitude.
 
O que, realmente, tocava a alma do poeta, por exemplo neste trecho de uma de suas poesias mais inspiradas, intitulada No meeting du comité du pain?
 
''Não deixemos, Hebreus, que a destra dos tiranos/ Manche a arca ideal de nossas ilusões./ A herança do suor, vertido há dois mil anos,/ Há de chegar intacta às novas gerações,/ Nós que somos a raça eleita do futuro,/ O filho que Deus amou, qual Benjamin...''
 
Em cada um desses versos, à exceção do quarto, Castro Alves relembra a história judaica. Em Os escravos, o poema Século compara a mocidade a ''Moisés no Sinai''.
 
O que reivindicava Castro Alves em seus poemas? Terá sido, ele também, um assumido cristão novo? Que interpretação final devemos dar, nos dias de hoje, a Vozes d'África? Logo na primeira estrofe, o poeta diz:
 
''Há dois mil anos te mandei meu grito.''

Que grito terá sido? Na geografia abstrata do lirismo, por onde terão voado as asas do Condor?
 
Resposta precisa não existe. Ditá-la, seria transformar a arte do verso numa ciência exata, com o que definitivamente não concordamos. Antônio Frederico de Castro Alves nasceu na fazenda das Cabaceiras, no interior da Bahia, no dia 14 de março de 1847, e ali viveu até os 7 anos. Junto aos pais e a sua ama-de-leite, Leopoldina, dela ouviu as primeiras histórias sobre os horrores da escravidão. Segundo um de seus biógrafos, Waldemar Matos, este lugar deixou sulcos inapagáveis na alma do poeta, que viria a ser o cantor dos escravos.

Em 1854 mudou-se para a cidade de São Félix, às margens do Rio Paraguaçu. Em Cachoeira, cidade vizinha, Castro Alves frequentou sua primeira escola. Pouco tempo depois, a família transferiu-se para Salvador. Quando o menino completou 9 anos, a família já numerosa (com os meninos Antônio, José Antônio e Guilherme e as irmãs Elisa e Adelaide) mudou-se para uma casa maior. Castro Alves foi matriculado no Colégio Sebrão, no alto das ladeiras da Montanha e da Conceição, onde atualmente fica a Praça Castro Alves. Após o nascimento de Amélia, a última filha do casal, a família transferiu-se para o Solar da Boa Vista, em Brotas. A casa da Boa Vista, mais do que qualquer outra, ficou ligada ao poeta, transparecendo em grande parte da sua obra.
 
Com a morte de D. Célia, mãe de Castro Alves, em 1859, a família passou a morar no centro da cidade, no Largo do Pelourinho. Em 1862, Dr. Antônio casou-se pela segunda vez com a viúva Maria Ramos Guimarães, mudando-se para o Solar do Sodré, onde hoje é o Colégio Ipiranga. Em 1861, ainda no ginásio, o poeta declamou sua primeira poesia, na festa de comemoração da liberdade da terra baiana, graças aos heróis de Pirajá:

''Se o índio, o negro, o africano,/ E mesmo o perito hispano/ tem sofrido servidão;/ Ah! Não pode ser escravo/ Quem nasceu no solo bravo/ Da brasileira região!''

Castro Alves e o irmão José Antônio seguiram para Recife, em 1862, onde fizeram os estudos preparatórios para ingressar na Faculdade de Direito. O poeta foi reprovado na primeira tentativa, mas teve a alegria de ver publicados alguns de seus poemas no Jornal do Recife.
 
Fez carreira poética até chegar à glória máxima de ser exaltado nos braços do povo, quando sua poesia social tinha a finalidade ostensiva de propaganda política e mesmo revolucionária. Por isso mesmo, o bardo era conhecido como ''a tuba sonora''.
 
Dois fatos importantes marcaram o nome de Castro Alves na campanha abolicionista no Brasil: de um lado, a Lei Euzébio de Queirós, de 1850, reprimindo o tráfico africano e, do outro, a Lei do Ventre Livre, sancionada em 28 de setembro de 1871, dois meses depois da morte do poeta, o que ocorreu a 6 de julho daquele ano.

Que mistério faz perdurar a genialidade do poeta dos escravos, decorridos 132 anos da sua morte? Seus poemas continuam a ser admirados, pela força da sua essência.

*Arnaldo Niskier é secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras.

(Artigo publicado no Jornal do Brasil, 19/05/2004, p. B2)