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sábado, 16 de janeiro de 2016

Água para o sertão

Roberto de Queiroz

Reprodução da internet / www.mgovbrasil.com.br
Num tempo em que “ternura” é tudo e é época de seca no sertão, conta-se aqui uma história genuinamente moral sobre a utilidade da primeira amoldada sobre a segunda.

O “cortês” federal lança os olhos em torno do céu (a brancura das nuvens está-se acinzentando):

– Espera aí, vai chover?

O “cortês” estadual e o municipal entreolham-se preocupados...

O “cortês” federal, mais que depressa, procura comunicar-se com São Pedro:

– Vai chover no sertão? – quer saber ele.

São Pedro sorri:

– Sossega, meu amigo. Este ano, durante muito tempo, vai chover no sertão.

– Este ano? – indaga o “cortês” federal. – A quem vou aferir “civilidade”?

São Pedro então percebe a preocupação daquele homem e, abruptamente, retruca:

– Quanto a isso, não sei. Mas, daqui a pouco, eu e o anjo acólito vamos abrir as válvulas das nuvens e liberar a chuva. Não quer ir conosco? A chuva este ano vai trazer muitas maravilhas ao sertão. Ajudando-nos, irrigando-o, já está fazendo sua parte.

Leve aceno de cabeça e (entre os dentes):

– “Obrigado” – é resposta do “cortês” federal.

São Pedro coça a cabeça. Como fazê-lo mudar de atitude?

Porém, antes mesmo de São Pedro concluir seu raciocínio, chegam o “cortês” estadual e o municipal.

Está formada a discussão.

São Pedro observa tudo de longe.

Um deles convida São Pedro para aderir a seu partido e faz-lhe uma proposta...

– Não dá para ouvir isso! – exclama São Pedro. – Vou expulsá-los daqui!

Eles protestam durante a expulsão.
  
E São Pedro, sem nenhum interesse, juntamente com o anjo acólito, abre as válvulas das nuvens e manda chuva ao sertão.

(Crônica publicada no jornal O Nheçuano, Roque Gonzales, RS, nov./ dez. 2015, p. 5)