Translate

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Tempo de definir


Nelson Hoffmann*

Em minhas leituras bíblicas, sempre tive especial predileção pelo Eclesiastes, do Antigo Testamento. Gosto daquela denúncia da total vaidade de tudo, do alerta para a precariedade do presente e da conclusão para a plena entrega em Deus. Vivemos em ilusão, pura ilusão! Tudo é ilusão. O tempo é transitório, precário, há um tempo para tudo, e somos fracos, quebradiços, nada controlamos, pois que há um tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de

Morrer é definir-se para sempre.
        
Atrai-me a condução para a total entrega. A capitulação contradiz-se em libertação. Testemunhei a rendição em mim quando sofri o infarto. Não quis aceitar, teimei, reagi. Encurralado, fui colocado diante dos fatos: ou ou. Em ambos, o fim ou quase. A chance mínima, em mãos de outros. Entreguei-me: fizessem de mim o que quisessem.

E fui feliz.

Assim mesmo descaio sempre. Gasto-me em lutas, lanço-me em empreitadas mil. Esfalfo-me por riqueza, glória, poder. Caço vantagem, lucro, bem-estar. Tenho no dinheiro, na vaidade, no prazer o meu norte. Quero abarcar o mundo com meus feitos. E esqueço que tudo tem seu tempo, há um momento oportuno para cada empreendimento debaixo do céu.

Por vezes acordo. Acordo e conheço que me embaralho, perco, que desando. Que passo, passei.

A vida?!

Como nos versos de Mário de Sá-Carneiro:

Passei pela minha vida

Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida

Disperso-me. Embrulho-me em sonhos, agito-me e não saio do lugar. Quando paro pra pensar, sinto que recuo. Quando recuo, encontro o vácuo. O que fiz do que fui?
        
Eu sou o que fui.
        
E o que serei? O que farei do que ainda não sou? Serei o quê?

Serei?!

Um dia saí de casa, ao trabalho, e meia hora depois morria.

Ainda tenho meia hora?

Serei o que sou. Elaboro-me. A cada minuto, a cada segundo, a cada fração de. Posso não chegar à próxima fração. A vida é frágil, eu sou débil e, além disso, o homem desconhece a sua hora.
        
Entrego-me. Não posso mais adiar, o tempo foge-me. Preciso recolher-me, concentrar. É Natal, é luz do caminho, é estrela da chegada. Contabilizo seis décadas e meia de vagueação e troco a folhinha de mais um Novo Ano. O presente já é passado e o futuro é quase presente. Tudo caminha para o fecho. A história conclui-se, é tempo de definir.

A definição final está próxima.


*Nelson Hoffmann é escritor e crítico literário gaúcho.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Sensibilidade

Nelson Hoffmann*

Eu tenho um amigo [...] com quem troco correspondência há tempos. Seu nome é Roberto de Queiroz, tem livro publicado [...], participa de várias antologias, exerce o magistério e mora em Camela, município de Ipojuca, Pernambuco. Angustiado, sofre com as limitações do mundo e realiza-se na arte.

[Quando] [...] publiquei o texto Pai e Filhos, em minha coluna do Jornal Igaçaba [...], mal se fizera a distribuição do jornal e já me chegava carta do Roberto de Queiroz, comentando o texto. Entre coisas mais, abordava a “sensibilidade” por mim mencionada. Sobre isso, trechos da carta:

… algo no texto Pai e Filhos me chamou a atenção. É essa tal sensibilidade, essa tal espiritualidade, esse tal gosto pela vida interior.

… o Amigo diz que sua filha Inês é sensível, inteligente e tem gosto pela vida interior [...]. Daí, há uma indagação: em um mundo materialista, as pessoas que primam pela vida interior não se tornam (de certo modo) um tanto frágeis?

Leo Buscaglia, em seu livro AMOR, diz que as pessoas sensíveis, caso deixem que os outros percebam isso, se tornam vulneráveis, de modo que as outras pessoas podem tirar proveito disso.

Eu, sensível que sou, já melindrei certas vezes, e não aprendi com os “erros”. Hoje, apesar de um pouco arisco, continuo a primar pela vida interior. Isso está no DNA ou será que é fruto da própria gênese?...

Fiquei com a carta na mão, a pensar. E agora?

Por essa eu não esperava. Dizer que alguém é sensível, inteligente e tem gosto pela vida interior é uma coisa, é a constatação de uma realidade. Mas saber se isso está no DNA, ou é da gênese, exigia um conhecimento que eu não alcançava.
    
Saí-me pela tangente, procurei a Inês**. Ela me ganha no assunto, brincando. Exibi a carta, pedi que lesse e respondesse. [...]
        
Deixei [a carta na sala, em cima da mesa]. Dias depois, a Inês mostrou-me a resposta. Foi esta:

... Pessoas sensíveis sofrem, e muito, nesse mundo movido pelo material. Por ser muito sensível e as pessoas não me compreenderem, por um período de minha vida criei em mim uma barreira, em forma de ironia, para me defender das coisas que me machucavam. Consegui aguentar por alguns anos, mas cheguei a um colapso nervoso.

Hoje [...] vejo o quanto é bom ter essa sensibilidade, apesar de sofrer, mas aprendi a ter meu coração aberto para entender as pessoas e meus atos, lembrar dos erros que cometi e não me arrepender de tê-los feito, saber que ninguém pode corresponder totalmente ao que esperamos e que eu posso, com a minha sensibilidade, ajudar as pessoas a encontrar uma resposta.

Por incrível coincidência, o livro que estou lendo é Perdas e Ganhos, de Lya Luft, e eu gostaria de escrever aqui um pequeno trecho [...]: “Tudo se complica porque trazemos nosso equipamento psíquico. Nascemos do jeito que somos: algo em nós é imutável, nossa essência são paredes difíceis de escalar, fortes demais para admitir aberturas. Essa batalha será a de toda a nossa existência. […] Algumas pessoas nascem mais frágeis que outras… Não é uma sentença, mas um aviso da madrasta Natureza.”

 (HOFFMANN, Nelson. In: A arte de nascer das palavras, Santo Ângelo, EDIURI/Florianópolis, LEDIX, 2009, p. 55-61)

*Nelson Hoffmann é escritor e crítico literário gaúcho.

**Inês(=Inês Hoffmann): escritora e crítica literária gaúcha.