Nelson Hoffmann*
Em minhas leituras bíblicas, sempre tive especial predileção pelo Eclesiastes, do Antigo Testamento. Gosto daquela denúncia da total vaidade de tudo, do alerta para a precariedade do presente e da conclusão para a plena entrega em Deus. Vivemos em ilusão, pura ilusão! Tudo é ilusão. O tempo é transitório, precário, há um tempo para tudo, e somos fracos, quebradiços, nada controlamos, pois que há um tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de…
Morrer é definir-se para sempre.
Atrai-me a condução para a total entrega. A capitulação contradiz-se em libertação. Testemunhei a rendição em mim quando sofri o infarto. Não quis aceitar, teimei, reagi. Encurralado, fui colocado diante dos fatos: ou… ou. Em ambos, o fim ou quase. A chance mínima, em mãos de outros. Entreguei-me: fizessem de mim o que quisessem.
E fui feliz.
Assim mesmo descaio sempre. Gasto-me em lutas, lanço-me em empreitadas mil. Esfalfo-me por riqueza, glória, poder. Caço vantagem, lucro, bem-estar. Tenho no dinheiro, na vaidade, no prazer o meu norte. Quero abarcar o mundo com meus feitos. E esqueço que tudo tem seu tempo, há um momento oportuno para cada empreendimento debaixo do céu.
Por vezes acordo. Acordo e conheço que me embaralho, perco, que desando. Que passo, passei.
A vida?!
Como nos versos de Mário de Sá-Carneiro:
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…
Disperso-me. Embrulho-me em sonhos, agito-me e não saio do lugar. Quando paro pra pensar, sinto que recuo. Quando recuo, encontro o vácuo. O que fiz do que fui?
Eu sou o que fui.
E o que serei? O que farei do que ainda não sou? Serei o quê?
Serei?!
Um dia saí de casa, ao trabalho, e meia hora depois morria.
Ainda tenho meia hora?
Serei o que sou. Elaboro-me. A cada minuto, a cada segundo, a cada fração de. Posso não chegar à próxima fração. A vida é frágil, eu sou débil e, além disso, o homem desconhece a sua hora.
Entrego-me. Não posso mais adiar, o tempo foge-me. Preciso recolher-me, concentrar. É Natal, é luz do caminho, é estrela da chegada. Contabilizo seis décadas e meia de vagueação e troco a folhinha de mais um Novo Ano. O presente já é passado e o futuro é quase presente. Tudo caminha para o fecho. A história conclui-se, é tempo de definir.
A definição final está próxima.
*Nelson Hoffmann é escritor e crítico literário gaúcho.