Nelly Carvalho*
O governador de Brasília, José Roberto Arruda, [...] oficializou em portaria, algo que muitos professores de Português já fizeram na prática: assinou o ato de demissão do gerúndio, na linguagem burocrática, lá do seu império. E pode? perguntaram alguns. E deve? perguntaram outros.
O governador de Brasília, José Roberto Arruda, [...] oficializou em portaria, algo que muitos professores de Português já fizeram na prática: assinou o ato de demissão do gerúndio, na linguagem burocrática, lá do seu império. E pode? perguntaram alguns. E deve? perguntaram outros.
Para começo de conversa, são outras as cassações pelas quais ansiamos, são outras as que são necessárias a uma faxina ética no país. Mas, faxina linguístico-gramatical? Nunca se ouviu falar.
Todos sabemos que a língua é feita de consensos e já dizia Bandeira “língua certa do povo, pois é ele que faz o português gostoso do Brasil”: nunca é feita através de banimentos e cassações.
Onde ficam as vozes dos nossos compositores como Geraldo Vandré, (Caminhando e cantando as mais lindas canções, somos todos iguais braços dados ou não) Nelson Ferreira (Comecei meu carnaval sorrindo com a alma e o coração cantando), Chico Buarque (Hoje o samba saiu, procurando você) poetas como Bandeira (Estão todos deitados dormindo profundamente) prosadores como Eça de Queirós (A mesma luz perdeu o tom magoado, cobrindo Jerusalém).
E por fim um dos forjadores do português, Camões (e a memória gloriosa daqueles reis que foram dilatando a fé e o império, a Ásia e a á África devastando) imprimindo movimento a seus versos, eternizando as conquistas portuguesas.
O uso das formas conjugadas parece mais natural ao falante. As formas nominais do verbo (infinitivo, gerúndio e particípio) sempre causam dificuldades no uso, excetuando o último, o particípio, que funciona como um adjetivo.
Se o alvo da cassação fosse o infinitivo pessoal, até se podia entender a antipatia, o olhar enviesado. Pois esta é uma forma que só existe no português (chama-se idiotismo da língua) e seu uso foi disciplinado tardiamente, no século XIX. Daí a variação de emprego da forma pessoal e impessoal, considerada por alguns gramáticos como questão de estilo.
Não é o caso do gerúndio. A forma é uma herança latina, vem desde a formação da língua e existe e é empregado nas línguas latina modernas, como o espanhol e o francês; o inglês também o adotou, seguindo o caminho do latim, língua a que tomou emprestado 60% do seu vocabulário. Criou a forma verbal com o ing final: seu emprego é muito frequente.
Qual a justificativa desta demissão sumária? Para os professores que a rejeitam é a dificuldade e o desinteresse de ensinar que, não sendo forma conjugada, não pode constituir uma oração independente.
Para as autoridades que se arrogam o direito de cassar uma forma verbal legítima, será que seu uso exagerado no telemarketing, influenciando o burocratês?
A desgastada frase Vou estar transferindo sua ligação, pode facilmente ser transformada em Vou transferir. E é mais didático e simples corrigir que proibir. Ninguém, ao assumir um mandato político, recebe delegação dos eleitores, para interferir nos usos da linguagem. Nem o ditador Mussolini conseguiu: proibiu o uso do pronome lei em italiano, mas ele permanece até hoje em uso.
Será que Chávez vai testar seu poder com alguma proibição do tipo?
Se o português é o espanhol sem ossos, como diz Unamuno, pela frequência de vogais, o português brasileiro é o português com azúcar, segundo a linguista galega, Pilar Vasquez Cuesta. A forma do gerúndio ajuda a torná-la mais doce e mais musical, evitando a aspereza do excesso de quês, nas orações subordinadas.
*Nelly Carvalho é professora da PG de letras da UFPE e conselheira do CEE/PE.