Roberto
de Queiroz
Velha Camela, poluída “não és”,
super-habitada “não és”, sem recursos “não és”, suja “não és”. Desumana, “sim”.
Mas és minha e eu não te troco por outra. Aqui nasceram meus sonhos, meus
anseios, a vontade de vencer obstáculos, a febre de trabalho e a criatividade.
Velha Camela, minha deusa, minha namorada.
“Nasceste ontem, renasces hoje.” Vejo-te viva, vejo-te imortal. Vejo-te
descobrindo o espírito de nosso tempo, “em que ricos e poderosos são fraternos,
apenas, embriagados”. Por outro lado, vejo-te adormecida. Vejo tuas ruas
tristes, teus mocambos empoeirados, olvidados lá nos morros, conduzidos pela
mão madrasta do abandono.
Os que vêm de fora não te conhecem, velha
Camela. Não sabem disso. Não conhecem esse mistério.
Acredito, velha Camela, que um dia há de
chover uma chuva bem forte e, a conta dessa chuva, haverá água suficiente para
lavar tua face, para lavar a sombrosidade de teu povo, pois teu povo está cada
vez mais sombrio, mais soturno, mais exasperado. O suor de seu rosto, os ganhos
de seu trabalho são malbaratados pela agudez das garras dos oportunistas.
Que tu acordes, velha Camela, sob a mística
equidade dessa chuva, tão equitativamente envolvente que trará em seus pingos
grossos e duradouros recordações do passado e repostas ao presente. Talvez ela
não traga todas as recordações nem todas as respostas, mas será com certeza o
reflexo vultoso da autenticidade que verei transparecendo na brumosidade da
água.
P. S.: Camela é distrito de Ipojuca (cidade
localizada na área metropolitana de Recife/PE).
(Crônica publicada na Folha de Pernambuco, 28/07/2014,
Opinião, p.10)