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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Ode à velha Camela

Roberto de Queiroz

Velha Camela, poluída “não és”, super-habitada “não és”, sem recursos “não és”, suja “não és”. Desumana, “sim”. Mas és minha e eu não te troco por outra. Aqui nasceram meus sonhos, meus anseios, a vontade de vencer obstáculos, a febre de trabalho e a criatividade.

Velha Camela, minha deusa, minha namorada. “Nasceste ontem, renasces hoje.” Vejo-te viva, vejo-te imortal. Vejo-te descobrindo o espírito de nosso tempo, “em que ricos e poderosos são fraternos, apenas, embriagados”. Por outro lado, vejo-te adormecida. Vejo tuas ruas tristes, teus mocambos empoeirados, olvidados lá nos morros, conduzidos pela mão madrasta do abandono.

Os que vêm de fora não te conhecem, velha Camela. Não sabem disso. Não conhecem esse mistério.

Acredito, velha Camela, que um dia há de chover uma chuva bem forte e, a conta dessa chuva, haverá água suficiente para lavar tua face, para lavar a sombrosidade de teu povo, pois teu povo está cada vez mais sombrio, mais soturno, mais exasperado. O suor de seu rosto, os ganhos de seu trabalho são malbaratados pela agudez das garras dos oportunistas.

Que tu acordes, velha Camela, sob a mística equidade dessa chuva, tão equitativamente envolvente que trará em seus pingos grossos e duradouros recordações do passado e repostas ao presente. Talvez ela não traga todas as recordações nem todas as respostas, mas será com certeza o reflexo vultoso da autenticidade que verei transparecendo na brumosidade da água.

P. S.: Camela é distrito de Ipojuca (cidade localizada na área metropolitana de Recife/PE).

(Crônica publicada na Folha de Pernambuco, 28/07/2014, Opinião, p.10)

domingo, 13 de julho de 2014

A derrota da seleção do Brasil para a da Alemanha

A derrota da seleção do Brasil por 7x1 para a da Alemanha serviu para mostrar que autoconfiança demais, às vezes, pode ser algo negativo (arrogância). O Brasil era considerado o país do futebol e, desse modo, o favorito a campeão mundial. Porém essa derrota acachapante serviu para revisar esse conceito e, também, para separar o Brasil do futebol do Brasil real. Este, sim, precisa ser discutido. Mas, por causa do futebol, a atenção a ele era desviada.

(Roberto de Queiroz, Diario de Pernambuco, 10/07/2014, p. A7)

sábado, 12 de julho de 2014

Professor “faz-tudo”

Quanto ao despreparo dos professores brasileiros, apresentado na 2ª edição da Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis), realizada pela OCDE e coordenada no Brasil pelo (Inep), a pesquisa confirmou o óbvio. É claro que aproximadamente metade deles não se sente preparada para o trabalho em sala de aula. Essa parcela contempla principalmente os professores da primeira etapa do ensino fundamental, os quais são obrigados a dar aulas de sete ou mais disciplinas. Cada membro desse grupo recebe a alcunha de professor polivalente (“faz-tudo”). O fato é que não sabe tudo, nem dispõe de tempo para fazer tudo como mando o figurino. Minha sugestão é que, a partir do 1º ano do ensino fundamental, cada professor lecione apenas uma disciplina específica, conforme sua área de atuação.

(Roberto de Queiroz, Folha de Pernambuco, 10/07/2014, p.7)

domingo, 6 de julho de 2014

Alpes italianos

Nos Alpes italianos, existia um vilarejo, onde as pessoas se dedicavam ao cultivo de uvas para a produção de vinho.

Uma vez por ano, ocorria uma festa para comemorar o sucesso da colheita. A tradição exigia que, nessa festa, cada morador do vilarejo levasse uma garrafa do seu melhor vinho, para colocar dentro de um barril grande que ficava na praça central.

Ocorreu, entretanto, que um dos moradores pensou: “Por que devo levar uma garrafa do meu melhor vinho? Levarei uma garrafa cheia de água, pois, no meio de tanto vinho, o meu não fará falta.” Assim pensou e assim fez.

No auge dos acontecimentos, como era de costume, todos se reuniram na praça, cada qual com sua caneca, para pegar uma porção daquele vinho, cuja fama se estendia além das fronteiras do país. Porém, ao se abrir a torneira do barril, um silêncio tomou conta da multidão: daquele barril saiu apenas água.

Como isso aconteceu? O fato é que todos pensaram como aquele morador: “A ausência da minha parte não fará falta.”

Nós somos muitas vezes induzidos a pensar: “Tantas pessoas existem nesse mudo que, se eu não fizer a minha parte, isso não terá importância.”

(AUTOR DESCONHECIDO)

terça-feira, 1 de julho de 2014

Os professores que mais trabalham

Roberto de Queiroz

Pesquisa realizada em 34 países, entre 106 mil profissionais de educação, revela que os professores brasileiros são os que mais trabalham, mas têm o salário mais baixo do mundo. No Brasil, esses profissionais trabalham, em média, 6 horas a mais que em outros países. Perdem 20% do tempo pedagógico com a indisciplina dos estudantes e 12% com tarefas administrativas (Jornal da Cultura, 25/06/2014).

O percentual referido às tarefas administrativas soa equivocado, basta considerar o tempo reservado ao preenchimento de diários de classe, os quais geralmente são cheios de redundâncias e exigências desnecessárias, tome-se como exemplo aqueles em que o planejamento registrado no início da cada unidade bimestral é repetido no registro diário de aulas, ou seja, faz-se a mesma coisa duas vezes. Há casos, inclusive, nos quais se exige do professor o registro de 5 notas por estudante, em cada unidade bimestral, avaliando em cada uma delas habilidades, competências, atitudes e comportamentos. Acrescente-se a isso o direito do estudante a uma recuperação paralela a cada uma dessas 5 notas e uma recuperação final.

Os professores da primeira etapa do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano) ministram aulas de 7 disciplinas, a saber, português, matemática, história, geografia, ciências, artes e ensino religioso. Se ainda forem acrescentadas a Constituição Federal e ética, conforme sugerem alguns políticos, o total ascenderá para 9. A maior parte desses profissionais trabalha em duas escolas. Há mesmo quem acredite que eles realmente dispõem de tempo para pesquisar, analisar, planejar os conteúdos a serem ministrados em todas essas disciplinas e para realizar (entre outras) as tarefas administrativas citadas anteriormente?

(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste, Mossoró/RN, 01/07/2014, Opinião, p. 2)